O pecado do desejo que se manifesta

É extremamente irritante ler resenhas sobre O pecado da carne (mais uma tradução péssima, desta vez para Eyes wide open, ou עיניים פקוחות), que o comparam a Brokeback Mountain. E, de modo geral, são críticas negativas, acusando o filme de não ter o apelo emocional de Ang Lee.

Depois dos cowboys, parece que a mídia “especializada” agora espera que histórias gays sejam sempre intensas, cheias de altos e baixos, dramáticas ao extremo e, no fim, trágicas. De fato, pode-se estabelecer alguns paralelos entre estes dois filmes: ambos tratam de relacionamentos impossíveis, seja por estigmas sociais ou religiosos.

Porém, é possível notar diferenças gritantes entre os dois, na forma como abordam o tema. Ang Lee conta uma história de amor convencional, Haim Tabakman conta uma história de desejo puro e simples. Em Brokeback Mountain, Ennis del Mar e Jack Twist, em resumo, se amam. Em seus encontros, passado o momento explosivo inicial de beijos e sexo, eles logo caem na discussão de planos futuros, como seria boa uma vida juntos e como esta possibilidade é inexistente. Em O pecado da carne, Ezri se apresenta como uma válvula de escape para o desejo encubado de Aaron.

Com uma narrativa lenta e personagens bastante sisudos (até mesmo de acordo com a cultura ortodoxa), o filme acompanha as clássicas fases de praticamente todas as narrativas gays: a pré-vida heterossexual, a aproximação de um personagem gay, a negação do até então heterossexual, a resistência, a consolidação do desejo, e, depois, a condenação.

O mais curioso é que nem Aaron nem Ezri parecem passar por uma fase intermediária à consolidação do desejo e à condenação, que tanto Ennis e Jack passam, em medidas diferentes: a do arrependimento. Talvez exatamente pela diferença da natureza dos sentimentos dos dois casais: o amor dos cowboys, por ser um sentimento de longa duração e difícil de deixar para trás, tortura ambos ao longo de décadas; enquanto o desejo dos israelenses se mostra mais intenso e muito mais prazeroso para ambos, deixando a culpa de fora do processo, como se não houvesse tempo para sentí-la.

Aaron, quando confrontado por seu rabino, afirma que se sente vivo. E é neste exato momento que se depreende o caráter de desejo de sua relação com Ezri: Aaron quer se sentir vivo, pois sua vida regrada, com sua esposa e filhos, dentro da tradição ortodoxa, para ele, era a morte. Basicamente, ele está afirmando a morte prévia de seu desejo, e seu renascimento com a chegada de Ezri.

Tanto é que nenhum dos dois sequer tenta esconder, inconscientemente, claro, este renascimento, sendo seu templo o quarto anexo ao açougue de Aaron. Como a manifestação de todo desejo, por mais que se tente esconder conscientemente, esta se dissolve e se mostra pelas brechas deixadas pelo dono do desejo, ou seja, o fato de Aaron fechar o açougue no meio do expediente para ficar com Ezri. E, assim, o desejo se mostra a toda a vizinhança, a qual, obviamente, o condena.

O pecado da carne, assim como Brokeback Mountain não possui final feliz. O que surpreende, porém, é o tom com o qual o final é retratado. Brokeback Mountain se encerra de forma trágica, como muitas outras histórias gays: um dos “pecadores”, e, geralmente, o mais liberto dos dois, morre subitamente, de modo a mostrar ao outro como o amor que tinham deveria ser maior que tudo, ao mesmo tempo condenando-o à eterna solidão. Em O pecado da carne, porém, após a exposição de seu relacionamento, Aaron e Ezri parecem decidir que o melhor seria que Ezri partisse, para que Aaron pudesse retomar sua vida. Ele, fortemente resignado, em seu lugar de direito e dever segundo as tradições ortodoxas, pede ajuda a sua esposa, para que resista ao desejo que o consome. O filme conclui com Aaron em um banho espiritual, para limpar-se do pecado cometido.

O mais incrível é que nenhum dos homens parece particularmente incomodado com o fim de seu relacionamento. Desde o princípio, parece que ambos sabem o fim que sua história terá e decidem, em comum acordo, aproveitá-la enquanto dure. Aaron segue firme em suas crenças e sua expressão de alívio durante o banho é o fechamento perfeito para esta história de manifestação e supressão do desejo.

Por Leonardo Gomes

Seleção Kinescope de filmes de Cannes 2010

Daí que eu resolvi fazer uma pequena seleção de filmes do Festival de Cannes desse ano que achei interessantes. Achei bem caidinha a seleção oficial, mas a Un Certain Regard, como sempre, faz tudo valer a pena, mesmo não estando lá uma maravilha também.

Eis os meus destaques da seleção oficial:


“Tournée” – Mathieu Amalric


“Un homme qui crie” – Mahamat-Saleh Haroun


“日照重慶” – Wang Xiaoshuai


“ลุงบุญมีระลึกชาติ” – Apichatpong Weerasethakul

Para a seleção da Un Certain Regard, é só clicar mais… Continuar lendo

“Sinédoque, Nova York”: O homem em seu duplo

Nunca o homem foi tão bem explicado e de forma tão simples num filme tão complexo. “Sinédoque, Nova York” (2008), primeiro longa-metragem dirigido por Charlie Kaufman – a mente de eterno brilho por trás dos roteiros de “Quero Ser John Malkovich” e “Adaptação” –, retrata, enfim, o ser humano em todas as suas nuances, com projetos, arrependimentos e misérias expostas em único personagem.

Caden Cotard (Phillip Seymour Hoffman) é um diretor de teatro que entra em crise depois de ser abandonado pela mulher e, na tentativa de criar algo novo não apenas para o mundo das artes, mas para a própria vida, mergulha em um projeto grandioso: encenar no teatro cada movimento de seu cotidiano. De inspirações existencialistas, o filme vencedor de cinco prêmios no Spirit Independent Award 2009 chega ao âmago da condição de ser: o que somos de verdade, o que fazemos e por quê, aonde iremos. É o bicho homem mostrado de dentro, em suas ambições, sucessos e fracassos.

Caden é, como toda pessoa da face da Terra, um ser humano em desintegração, em degeneração, em destruição… Destruição não apenas física, de um corpo que padece e se acaba aos poucos todos os dias, mas da sua própria concepção de tempo – presente, passado, futuro. De tudo que se vive, apenas se tem uma única certeza: só o fim permanece, só o fim nos resta e não há nada que a miudeza do ser humano possa fazer diante do monstro dilacerante que é a vida e o universo. Não somos nada e passamos o tempo inteiro tentando encontrar um sentido, um motivo pra viver, ou ao menos para momentaneamente esquecer que a areia se esvai pela ampulheta – e que essa mesma motivação para continuar acordando todos os dias simplesmente não existe, por mais que tendemos a acreditar nela.

O filme é muito cheio de símbolos, dialoga com tantas correntes filosóficas – existencialismo, psicanálise, pessimismo… – que é difícil entendê-lo em sua totalidade devido à enormidade de elementos que certamente ficariam perdidos em um mapeamento. Uma questão muito presente é a brincadeira frequente de Kaufman com ficção x verdade, não sendo possível, em muitos momentos, estabelecer o que é e o que não é. A partir dos flertes kafkianos com o absurdo inexorável, é meio impossível traçar uma história pontualmente linear porque muito também parece ser fruto da imaginação de um inventivo diretor de teatro que, querendo ou não, acaba sempre fazendo as escolhas que melhor lhe cabem (e também aos outros a seu redor) dramaticamente.

O diretor teatral interpretado por um genial Phillip Seymour Hoffman é, de fato, puro teatro. O teatro é a sua doença – ao longo do filme, Caden se sente eternamente enfermo, somatizando sintomas sem explicação fisiológica –, é a peste mencionada por Antonin Artaud em “O Teatro e Seu Duplo”, que também diz: “É preciso um sentido da vida renovado pelo teatro, onde o homem impavidamente torna-se senhor daquilo que ainda não é e o faz nascer”. Eis sua apropriação: apenas no trabalho Caden pode, enfim, dirigir a própria vida sem se sentir esmagado pelo acaso, por terceiros, pelo destino. No fim de tudo, ele está apenas interpretando seu papel no grande drama que é a vida. Ele comanda a si próprio, agindo como se não tivesse controle sobre suas ações; como se fosse, apartado de si mesmo, um diretor exigente que lhe suga as forças para que melhor faça parte do drama – mesmo que seja não tomando parte em nada. Parece que ele só toma as rédeas de alguma coisa quando inicia seu projeto megalomaníaco de recriar a própria vida num palco; como se, enfim, tomasse uma atitude ativa e altiva diante da mesma. A menção obscura a respeito de sua homossexualidade também dialoga com isso, com uma noção de papel social que interpretamos – do que esperam que devemos cumprir quando desistimos de viver a vida em seu sentido total para vivê-la em subserviência às obrigações que temos com o próximo.

O monólogo do funeral e ainda a explicação de Ellen sobre como Caden vivencia sua experiência de ser resumem e explicam todo o caminho que Kaufman tenta percorrer durante o filme. O sentido da vida é o sentido do mesmo: um nada em eterna desintegração. O monólogo é, aliás, uma grande crítica também a essa ideia da existência de Deus, de algo maior que vem nos salvar, de um deus ex machina – em seu sentido literal – que vai nos livrar de todo o torpor em que vivemos, quando qualquer coisa pode ser uma fonte de esperança, pode dar sentido pro que simplesmente não possui nenhuma coerência e nunca há de ser bom o bastante.

O curioso é que o filme leva Nova York em seu título, mas a cidade não é propriamente retratada – há pouquíssimas externas, por exemplo. Por isso a “sinédoque” do título: Nova York só aparece na ideia de parte pelo todo, sendo mostrada como o retrato do retrato da cidade encenado dentro do grande teatro de Caden. Essa afirmação da localidade, além da evidente ligação emocional com o diretor nova-iorquino, ajuda a situar os personagens em seu espaço-tempo, fornecendo ao espectador mais pistas sobre quem eles são – talvez numa reflexão de Kaufman sobre a distância de si próprio que os indivíduos sentem em uma metrópole. Uma história como essa só poderia se passar em uma grande cidade, onde todos têm pouco tempo sequer para enxergar os outros, quanto mais a si mesmos.

Tecnicamente, não há muito o que falar, exceto pelas atuações – o elenco de sonho traz grandes nomes como Samantha Morton, Jennifer Jason Leigh e o excelente Hoffman – e a cenografia, que realmente leva a sério o conceito de dizer quem os personagens são e que momento estão vivendo. A casa eternamente em chamas de Hazel (Samantha Morton) é um exemplo muito claro, talvez numa ideia de representação da personagem pela ideia de fonte de vida que a luz e o calor nos dão, bem como pela noção de destruição que pode causar – além do fato de Hazel ser o porto seguro de Caden, o único lugar onde ele, enfim, pode sentir algo, tendo a ver talvez com o consumo abrasivo que as emoções nos causam. A fotografia é eficiente, mas bastante convencional. Não se nota muitas peculiaridades, exceto por um predomínio de sombras e cores fortes, especialmente nos ambientes internos, nas casas dos personagens.

A trilha sonora é um ponto frágil. Não exatamente, mas tem uma cara de “mais do mesmo”. Em muitos momentos, pensei que começaria a tocar “Everybody’s Gotta Learn Something”, do Beck, como ouvido à exaustão em “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” (2004), filme de Michel Gondry roteirizado por Charlie Kaufman. Isso provavelmente tem a ver com a fato de a equipe do departamento de música ser praticamente a mesma nos dois filmes. E a única música não-instrumental tocada no filme, “Little Person”, escrita pelo diretor em parceria com o multi-instrumentista Jon Brion, dá o ar conclusivo que o espectador precisava para ter certeza das convenções existenciais-pessimistas que os 124 minutos de filme tentaram mostrar ao espectador. Quando Deanna Storey canta “Eu sou apenas uma pequena pessoa / Uma pessoa em um mar” ou “E em algum lugar / Talvez, algum dia / Talvez, algum lugar longe daqui / Eu vou encontrar uma outra pequena pessoa / Que vai olhar pra mim e dizer / Eu te conheço / Você é quem eu estava esperando”, está explicando exatamente o que eu disse no início do texto a respeito de um ser humano pequeno, esmagado diante do universo, sempre em busca de encontrar a si mesmo em outras pessoas e que só vai enfim fazê-lo na morte – o único momento de lucidez que de fato nos é concedido. Brilhante.

Por Julianne Gouveia

A genealogia do mal

(O Oscar aconteceu há dez dias e, sim, nos recusamos terminantemente a escrever sobre a premiação. Pensamos ser desnecessário fazer algo que o mundo inteiro já estaria fazendo. Mas isso não vai nos impedir de, ao longo do tempo, comentar qualquer coisa a respeito, claro.)

Tenho considerações escusas e óbvias sobre o Oscar, mas uma categoria que sempre me interessa muito é a de Melhor Filme Estrangeiro, que no geral faz jus DE VERDADE ao adjetivo e traz mesmo a nata do cinema mundial. De todos os indicados, só tive oportunidade – e, principalmente, interesse – de ver “A Fita Branca” (“Das weiße Band”), o filme do austríaco Michael Haneke que venceu a Palma de Ouro em Cannes 2009 e o Globo de Ouro 2010. Fui assistir, sem muitas expectativas, a estreia do longa no Festival do Rio do ano passado. Eu tinha algumas reservas com produções do Haneke depois da péssima experiência de “Caché” – a cena do suicídio quase me matou -, da letargia diante de “A Professora de Piano” e do trailer assustador da refilmagem de “Violência Gratuita”… Mas “A Fita Branca” foi uma grande surpresa, me levando a considerá-lo o melhor filme daquele ano – quiçá, um dos melhores que já assisti na vida.

Pra começar, uma sinopse simples de “A Fita Branca” pode fazê-lo parecer com muitos outros filmes de suspense que vimos por aí: fatos estranhos começam a acontecer em um vilarejo alemão no início do século. Enquanto a população tenta descobrir as causas dos acidentes, vai-se desenhando para o espectador uma sociedade local de caráter duvidoso e extremamente hipócrita. Nesse caminho, percebe-se um estilo narrativo muito simples e direto, cuja estratégia me remeteu diretamente a casos como de “O Estrangeiro”, de Albert Camus. Ao contrário de “Caché”, que pesava pelo excesso de planos longos nos quais nada acontecia, tantas coisas acontecem ao mesmo tempo em “A Fita Branca” que quase nos perdemos diante delas. A narrativa “fria” esconde muitas reflexões sobre a consciência, a essência e todo o ideário da moralidade e justiça do ser humano perante as condições impostas pela vida em sociedade – que, na maioria das vezes, gera o escamoteamento das imperfeições e condutas tortas inerentes a todos.

O mote central da trama é aludir não apenas a uma sociedade doente, formadora de um dos regimes políticos mais sangrentos da humanidade, mas tratar da origem da maldade humana. A tal fita branca do título é uma irônica oposição à toda a idéia do filme, já que ela remete à pureza, característica essa que não é imanente ao ser humano e que não está presente nem mesmo nas crianças. Nesse contexto, o filme quebra paradigmas ao identificar esse elemento corruptor principalmente nos pequenos, geralmente idealizados como seres praticamente angelicais, portadores inequívocos da ausência de malícia. Essencialmente, nos mostra que, em uma atmosfera como aquela, essa pureza só tende a ser cada vez mais aniquilada por um sistema social e familiar que molda a inocência em brutalidade, maldade e toda sorte de sentimentos ruins.

“A Fita Branca” irradia tensão. Essa atmosfera é gerada principalmente pelos recursos da fotografia, com seu preto & branco em alto contraste e os planos usualmente fechados. O próprio idioma alemão causa essa estranheza à trama – uma idéia mesmo de repressão, de retidão quase militar. E apesar da similaridade de temas – a Alemanha pré-nazista -, não acho que “A Fita Branca” possa ser comparada a obras como “O Ovo da Serpente” (1977), como muito ouvi falar por aí. O clássico de Ingmar Bergman também traz em si uma grande tensão, mas os recursos são bastante diferenciados. “A Fita Branca” tem em si uma universalidade temática, muito mais a fim com os ecos da existência humana do que com o nascimento de uma superpotência política. Assim sendo, a tensão é a verdadeira protagonista do filme, é o motivo de existir da trama. E apesar de se tratar de um filme de época, esse longa-metragem de mais de duas horas dialoga inteiramente com os dias atuais de uma raça que, muito arraigada ainda aos valores da hipocrisia cotidiana, gera para si uma vida de amarras, com seres cada vez mais doentes e brutais: a raça humana.

Por Julianne Gouveia

Um post feminino

Amira Casar e Rocco Siffredi em Anatomia do Inferno

Então que hoje é o Dia Internacional da Mulher. Este é um dia em que eu geralmente fico particularmente chato, mais do que já sou. Meu lado feminista aflora e se revolta toda vez que vejo um “feliz Dia da Mulher”, ou alguém dizendo que vai comprar flores para presentear uma mulher, ou coisas do tipo.

O Dia Internacional da Mulher, e eu repito isso todos os anos, não é uma data comercial, não é uma data comemorativa. Este dia tem o exatamente o mesmo apelo do Dia da Consciência Negra ou o Dia do Orgulho LGBT, ou seja, é um dia de memória e luta. Mas, obviamente, não é de se surpreender que ele tenha sido quase que totalmente esvaziado de significado por nossa querida sociedade de consumo, essencialmente masculina.

Bem, deixando a defesa feminista um pouco de lado e voltando ao assunto central deste blog, acredito que não se possa deixar o dia de hoje passar sem falar em Catherine Breillat, cineasta e escritora francesa, extremamente autoral.

Charlotte Alexandra em Une vraie jeune fille

O tema central da filmografia de Breillat é nada mais nada menos que a mulher. Seus filmes são profundas investigações do feminino, em todas as suas manifestações, sempre sob a ótica de suas protagonistas. A preferência da cineasta é pelas questões do corpo e da sexualidade femininos: a quem pertence o corpo da mulher, seu desenvolvimento, a busca pelo prazer sexual, a formação da identidade sexual feminina, a tensão entre mulheres (com seus panos de fundo freudianos), a autonomia feminina, etc. Enfim, temas caros ao feminismo contemporâneo, pós-revolução sexual, que questiona a real conquista feminina e se, de fato, houve alguma.

Breillat não nos poupa de imagens para sustentar suas investigações. O corpo feminino é desmistificado, desnudado de sua aura mística, de acordo com a diretora, essencialmente masculina – o corpo da mulher lhe foi roubado e mistificado pelo homem que, temendo o poder que o conhecimento de si poderia dar a ela, lhe devolve um corpo coberto, não necessariamente por roupas, mas por poesia. O corpo da mulher não lhe pertence e dele não se espera nada que seja meramente fisiológico.

Pois é exatamente o movimento oposto que Catherine Breillat pretende fazer. Ela desnuda o feminino de toda sua mistificação, de toda sua poesia e o apresenta como qualquer outro corpo: essencialmente fisiológico, inexoravelmente sexual. Desde Une vraie jeune fille, passando por Romance e À ma sœur!, Breillat abusa de imagens fortes para ilustrar seu pensamento, não economizando em cenas de sexo explícito e nudez frontal. Suas personagens são, de modo geral, jovens mulheres (algumas mais que as outras), todas em meio a algum tipo de processo de descoberta.

Rocco Siffredi e Caroline Ducey em Romance

Seu filme mais extremo neste sentido, porém, é Anatomia do Inferno, no qual uma mulher é salva do suicídio por um homem no banheiro de uma boate gay. O homem é ninguém menos que Rocco Siffredi, astro pornô que já havia trabalhado com Breillat em Romance. A mulher propõe ao homem que ele a acompanhe em seu quarto, enquanto ela discursa sobre suas visões a respeito do sexo e da sexualidade, mediante pagamento. Inicia-se, então, uma jornada de descobertas para o homem.

O filme lida com o medo masculino do corpo e da sexualidade femininos. Nele, o homem explora o corpo da mulher, estimulado por ela, fazendo descobertas que o levam a uma crise de identidade. Houve acusações de homofobia ao filme, uma vez que a personagem masculina era inicialmente gay. Não nos esqueçamos, porém, o quão comum são declarações de “nojo” ou “asco” com relação ao corpo feminino, notadamente a vagina, proferidas por homens gays. Acredito que este tenha sido um recurso utilizado por Catherine Breillat para revelar o potencial misógino masculino, e como ele não é exclusivo dos homens heterossexuais.

Breillat vai além também no conteúdo explícito deste filme: há diversos close-ups extremos da vagina não-depilada da protagonista (para os quais foi utilizada uma dublê de corpo, obviamente) e momentos em que objetos são inseridos nela. O ponto clímax do filme, porém, é quando o homem retira um absorvente interno da vagina da mulher, liberando um fluxo de sangue sobre a cama. O absorvente, então, é mergulhado em um copo d’água, cujo conteúdo o homem bebe. Não há nada que provoque mais asco ao homem – e, muito freqüentemente, à própria mulher – do que a menstruação e Catherine Breillat faz questão de representá-la da forma mais direta possível, obrigando o espectador a lidar com aquilo de que jamais se fala. É o exato oposto dos comerciais de absorventes, que ilustram mulheres lindas, sorridentes e, acima de tudo, limpas. Anatomia do Inferno é um caso extremo, mostrando a mulher destituída das máscaras que lhe foram impostas ao longo dos séculos através da iniciativa de uma mulher que se permite ser explorada como uma terra misteriosa.

Em entrevista, Catherine Breillat afirma que não há nada que fascine e assuste mais o homem que a vagina. Seus filmes, portanto, a revelam como instrumento de poder para as mulheres, estimulando-as a despí-la da mistificação masculina que lhes foi incutida. Fica aqui então minha homenagem às mulheres – não uma homenagem pseudoafetiva (e implicitamente machista), mas uma homenagem solidária, de estímulo à descoberta e ao questionamento.

Anaïs Reboux e Roxane Mesquida em À ma sœur!

Por Leonardo Gomes

Belle de jouissance; ou, um post pseudoprotolacaniano

Relembrar é viver, então, voltando no tempo, relembro o episódio Extremes, da série de documentários sobre o sexo no cinema Indie sex. Neste episódio, são comentados dezenas de pérolas do cinema, que ilustram as várias facetas do sexo extremo no cinema.

Muitas dessas pérolas, claro, eu já tinha assistido (minha própria companheira de blog me acusa de caçar esse tipo de filme. E é verdade!), porém uma em particular me atraiu: Belle de jour.

É incrível como a gente passa anos da vida ignorando um filme, por pura ignorância. Eu não fazia idéia do que ele tratava e, sinceramente, sempre tive um certo preconceito para com o Buñuel – claro, também pela predileção dos cinéfilos a ele e pela minha mania de me recusar a ser cinéfilo.

Pois bem, hoje finalmente assisti. Só me rendi quando descobri que ele tratava das fantasias de uma mulher casada, deprimida com a vidinha de esposa de classe média. Séverine – e, aqui, não creio que seja mera coincidência com Severin, do livro A Vênus das peles, de Sacher-Masoch, o qual eu não vou nem destrinchar, infinitas as referências e inspirações provocadas por ele -, vivida por Catherine Deneuve, sonha constantemente com punições e humilhações sofridas por ela, sempre envolvendo seu marido e outros homens. Um belo dia, sua vida muda quando ela toma conhecimento de um bordel de luxo na cidade. Obviamente, ainda que hesitante, Séverine começa a trabalhar no bordel à tarde, o que lhe designa seu nome de guerra, Belle de Jour.

No bordel, Séverine, ou Belle, passa a realizar suas fantasias. Ainda que de forma limitada, uma vez que sofre apenas parte da humilhação que a excita, Séverine alivia as tensões de sua vida recatada e se torna uma mulher muito mais confiante e realizada.

O mais interessante é que Séverine não pensa em deixar o seu marido em momento algum. Pelo contrário, ela lhe é bastante fiel: todas as suas fantasias envolvem o marido como condutor e dominador (aqui, em uma inversão da relação entre Severin e Wanda em A Vênus das peles), sempre com sua presença e consentimento. Porém, Séverine parece encontrar no bordel uma solução prática: se o marido não compartilha desta forma de desejo com ela, o que a faz infeliz, que ela procure a solução alhures.

Séverine passa a trabalhar no bordel quase que como uma forma de terapia e o que encanta é esta visão de que, à primeira vista, uma traição tão pesada possa, na verdade, salvar um casamento e, até certa medida, uma psiquê. Séverine, ela mesma, diz em dado momento que não consegue controlar seu desejo de voltar ao bordel, que é algo que ela não pode explicar. Obviamente, as fantasias não são algo facilmente explicável e o desejo incontrolável de satisfazê-las, muito menos.

O filme transcorre de forma leve na abordagem do processo de “cura” de Séverine – de um estado depressivo e insatisfeito à busca da realização de seu desejo. Não há condenação por parte do cineasta e o desejo de Séverine jamais é representado de forma caricata, bruta ou como algo fútil. Pelo contrário, inclusive, nas seqüências de sonho de Séverine, tudo se passa de forma bela e leve, como se espera ser a busca pela realização do desejo. O olho que julga some, e a ótica é tão somente aquela de Séverine.

Tudo corre bem até Marcel surgir na vida de Séverine. Ele é um marginal, um homem bruto e dominador, exatamente o que ela deseja. Infelizmente, ou, talvez exatamente por isso, Marcel acaba se apaixonando por Séverine e desejando vê-la em outros momentos e locais que não no bordel à tarde. Séverine, com o perdão da provável aplicação errônea de um termo lacaniano, entra em jouissance: indo sempre além de seu desejo, Séverine ultrapassa este princípio, à medida em que se deixa levar e envolver com outro homem. O prazer vira dor, e eu explico: ainda que seu envolvimento pareça superficial e apenas profissional (pelo menos é esta a sensação que eu tive), Marcel, não aceitando ser rejeitado pela Bela da Tarde, a segue até sua casa, deixando brutalmente o domínio da fantasia.

O que acontece depois é previsível: Marcel, louco de ciúmes, dá três tiros no marido de Séverin e depois é morto pela polícia. Seria o fim trágico, a punição exemplar de Séverine, ou, lacanianizando erroneamente de novo, seu encontro com o Real, caso não se tratasse de um filme de Buñuel. No fim do filme, vemos Séverin cuidando de seu marido inválido. Após um amigo do casal supostamente contar a ele tudo sobre o trabalho vespertino de Séverine, ela novamente fantasia, ao ver seu marido em lágrimas: desta vez, que ele levanta e a beija. Fora da janela, novamente a cena inicial do filme, uma outra fantasia de Séverine.

Aqui, ao meu ver, fica aberta a discussão: estaria Séverine alcançando sua fantasia máxima, ou seja, viver atrelada a seu marido inválido, uma nova forma de humilhação? Ou talvez a invalidez de seu marido fosse a liberação total da vivência de sua fantasia, ou seja, uma vez inválido e sabendo de sua vida paralela, seu marido não mais consistiria em obstáculo para sua dedicação total à fantasia? Ou talvez nada disso. Eu não sei, ainda não cheguei a esse ponto de clareza – e provavelmente nunca chegarei. E também não acho que essa reflexão, que merece ser muito mais profunda, caberia aqui, em um post de blog já longo demais. Parei.

Por Leonardo Gomes

Kurosawa, cinema sueco e mulheres à beira de um ataque de nervos no MAM e no CCBB

Liv Ullmann em “Persona”: Exibição no CCBB

O verdadeiro cinema de arte é o protagonista nas salas cariocas durante o mês de março. Isso porque o Museu de Arte Moderna (MAM) e o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-Rio) estão com ótimas seleções de filmes para os próximos 31 dias. Clássicos de cineastas como Ingmar Bergman, Pier Paolo Pasolini, Akira Kurosawa, Federico Felini e Pedro Almódovar recheiam a programação dos mais tradicionais pólos de cultura da cidade.

No mês de comemoração ao Dia Internacional da Mulher, o CCBB-Rio apresenta na mostra “Mulheres Alucinadas”.  A seleção de 33 filmes traz um amplo panorama sobre as personagens femininas mais marcantes do cinema mundial, tais como a Séverine de Catherine Deneuve  (“A Bela da Tarde”, Luis Buñuel), a Elizabeth Vogler de Liv Ullmann (“Persona”, Ingmar Bergman) ou a Julie Kohler de Jeanne Moreau (“A Noiva Estava de Preto”, François Truffaut). “Mulheres Alucinadas” tem co-curadoria de Julio Miranda, do Cineclube Polytheama, e ocupa as salas de cinema 1 e 2 entre os dias 09 a 31.

O MAM traz filmes Akira Kurosawa e ainda uma pequena seleção de cinema sueco, para deleite dos cinéfilos mais tr00. A mostra “Centenário Kurosawa” homenageia os cem anos de nascimento do diretor japonês com uma retrospectiva. As 14 películas selecionadas – duas são longas-metragens roteirizados por ele – são exibidas na sala da Cinemateca entre 05 e 21 de março. No último final de semana do mês, é a vez da invasão sueca e uma seleção de cinco filmes clássicos da terra de Greta Garbo, com exibição de “O Sétimo Selo” (1957) em película.

Confira a programação do CCBB e do MAM.

Serviço: Mulheres Alucinadas (09 a 21 de março). CCBB-Rio: Rua Primeiro de Março, 66, Centro. Centenário Kurosawa (05 a 21 de março) e Cinema Sueco (26 a 28 de março). MAM: Av. Infante Dom Henrique, 85, Parque do Flamengo. Grátis.

Por Julianne Gouveia

Formação intelectual ‘de grátis’!

Um amigo me recomendou um post do blog A Pimenta que todo mundo interessado de verdade em cinema precisa dar uma olhada. Toma!

Já baixei o do Fernando Mascarello… Só pra começar. Como boa cinéfila (Perdão, Leo) que não freqüentou carteiras de graduações de cinema, não dá pra fugir de conhecer os movimentos por outros meios. Hehe.

Por Julianne Gouveia

Quero ser grande

Daí que eu comecei a escrever um post quase infinito sobre o Apichatpong Weerasethakul (aka Joe), porque hoje eu assisti o Eternamente sua (2002), fechando os três principais filmes dele. Escrevi, escrevi, me perdi, não sabia pra onde ia e resolvi passear pela internet para espairecer.

Em algum ponto, esbarrei com a galeria Antebellum de Los Angeles, especializada em arte fetichista, dirigida por Rick Castro, co-diretor e co-roteirista de Hustler White, junto com Bruce LaBruce. Até aí, fica a dúvida: okay, e o que isso tem a ver com cinema? Pois bem.

Explorando o site deles e dando uma olhada nos vários (e divertidos) flyers de exposições, descobri um evento mensal chamado Fetish Film Night, no qual são apresentados documentários e ficções, obrigatoriamente com temáticas fetichistas.

Confesso que o que me chamou mais atenção foi o Bigger!, cujo diretor curiosamente se chama Mark Jacobs, o que, à primeira vista, causa um espanto, antes de a gente perceber que não se trata do estilista Marc Jacobs.

Pois bem, Bigger! é um documentário sobre o fascínio e, por que não, obsessão por pênis, testículos e tudo o que envolva aquela área, com tamanhos avantajados e até um tanto quanto impraticáveis. Infelizmente, não consegui mais nenhuma informação a respeito do filme, do diretor ou, ainda, o filme em si, mas quem eu estou tentando enganar? Não há nada que eu ame mais que filmes bizarros que tratam de temas bizarros.

Completam a lista um melodrama sobre um médico que se apaixona pela mulher cuja perna amputa, um documentário sobre um fetiche por pessoas vestidas de animais e um outro sobre Kenneth Pinyan, um homem que morreu enquanto fazia sexo anal com (ou, mais objetivamente, dava para) um cavalo, dentre outros. Este último (Zoo, de 2007) foi exibido no Festival do Rio de 2007, sob o título Zoofilia. Infelizmente, acabei não assistindo, mas vou correr atrás do prejuízo e prometo postar aqui minhas impressões a respeito depois (no topo do post, o trailer do filme).

Para quem, como eu, tem uma certa curiosidade bizarra, seguem alguns flyers da FFN after the bump, levando-se em consideração seu caráter um tanto quanto NSFW.

Por Leonardo Gomes

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Bette Davis’ eyes

Hoje, depois de muitas tentativas, finalmente assisti “A Malvada” (1950). Não tenho tanto contato com a Classic Hollywood quanto eu gostaria – até porque tive experiências mal-sucedidas, especialmente com comédias como “Ninotchka” -, mas acho que foi um bom meio de começar. Nunca havia assistido nada com a Bette Davis e fiquei muito impressionada com a força que ela tinha em cena. “A Malvada”, que tem em seu elenco até mesmo uma Marilyn Monroe apagadinha – poucos anos antes da famosa cena de “O Pecado Mora Ao Lado” (1955) – é o universo onde reina absoluta a grande estrela que reduz o resto do elenco como que a função de orbitar ao seu redor. Clássico inquestionável.

Por Julianne Gouveia