O pecado do desejo que se manifesta

É extremamente irritante ler resenhas sobre O pecado da carne (mais uma tradução péssima, desta vez para Eyes wide open, ou עיניים פקוחות), que o comparam a Brokeback Mountain. E, de modo geral, são críticas negativas, acusando o filme de não ter o apelo emocional de Ang Lee.

Depois dos cowboys, parece que a mídia “especializada” agora espera que histórias gays sejam sempre intensas, cheias de altos e baixos, dramáticas ao extremo e, no fim, trágicas. De fato, pode-se estabelecer alguns paralelos entre estes dois filmes: ambos tratam de relacionamentos impossíveis, seja por estigmas sociais ou religiosos.

Porém, é possível notar diferenças gritantes entre os dois, na forma como abordam o tema. Ang Lee conta uma história de amor convencional, Haim Tabakman conta uma história de desejo puro e simples. Em Brokeback Mountain, Ennis del Mar e Jack Twist, em resumo, se amam. Em seus encontros, passado o momento explosivo inicial de beijos e sexo, eles logo caem na discussão de planos futuros, como seria boa uma vida juntos e como esta possibilidade é inexistente. Em O pecado da carne, Ezri se apresenta como uma válvula de escape para o desejo encubado de Aaron.

Com uma narrativa lenta e personagens bastante sisudos (até mesmo de acordo com a cultura ortodoxa), o filme acompanha as clássicas fases de praticamente todas as narrativas gays: a pré-vida heterossexual, a aproximação de um personagem gay, a negação do até então heterossexual, a resistência, a consolidação do desejo, e, depois, a condenação.

O mais curioso é que nem Aaron nem Ezri parecem passar por uma fase intermediária à consolidação do desejo e à condenação, que tanto Ennis e Jack passam, em medidas diferentes: a do arrependimento. Talvez exatamente pela diferença da natureza dos sentimentos dos dois casais: o amor dos cowboys, por ser um sentimento de longa duração e difícil de deixar para trás, tortura ambos ao longo de décadas; enquanto o desejo dos israelenses se mostra mais intenso e muito mais prazeroso para ambos, deixando a culpa de fora do processo, como se não houvesse tempo para sentí-la.

Aaron, quando confrontado por seu rabino, afirma que se sente vivo. E é neste exato momento que se depreende o caráter de desejo de sua relação com Ezri: Aaron quer se sentir vivo, pois sua vida regrada, com sua esposa e filhos, dentro da tradição ortodoxa, para ele, era a morte. Basicamente, ele está afirmando a morte prévia de seu desejo, e seu renascimento com a chegada de Ezri.

Tanto é que nenhum dos dois sequer tenta esconder, inconscientemente, claro, este renascimento, sendo seu templo o quarto anexo ao açougue de Aaron. Como a manifestação de todo desejo, por mais que se tente esconder conscientemente, esta se dissolve e se mostra pelas brechas deixadas pelo dono do desejo, ou seja, o fato de Aaron fechar o açougue no meio do expediente para ficar com Ezri. E, assim, o desejo se mostra a toda a vizinhança, a qual, obviamente, o condena.

O pecado da carne, assim como Brokeback Mountain não possui final feliz. O que surpreende, porém, é o tom com o qual o final é retratado. Brokeback Mountain se encerra de forma trágica, como muitas outras histórias gays: um dos “pecadores”, e, geralmente, o mais liberto dos dois, morre subitamente, de modo a mostrar ao outro como o amor que tinham deveria ser maior que tudo, ao mesmo tempo condenando-o à eterna solidão. Em O pecado da carne, porém, após a exposição de seu relacionamento, Aaron e Ezri parecem decidir que o melhor seria que Ezri partisse, para que Aaron pudesse retomar sua vida. Ele, fortemente resignado, em seu lugar de direito e dever segundo as tradições ortodoxas, pede ajuda a sua esposa, para que resista ao desejo que o consome. O filme conclui com Aaron em um banho espiritual, para limpar-se do pecado cometido.

O mais incrível é que nenhum dos homens parece particularmente incomodado com o fim de seu relacionamento. Desde o princípio, parece que ambos sabem o fim que sua história terá e decidem, em comum acordo, aproveitá-la enquanto dure. Aaron segue firme em suas crenças e sua expressão de alívio durante o banho é o fechamento perfeito para esta história de manifestação e supressão do desejo.

Por Leonardo Gomes

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